Comida de verdade

Ovo frito. Foto do banco de imagens Pexels
Comida de verdade, a verdade da comida: não comemos discurso, “narrativa”, receita escrita e boas intenções. Só o ovo frito, mesmo

A caminho de um velho mercadinho libanês, vejo que surgiu na vizinhança um novo restaurante. Na fachada envidraçada, o decalque de uma promessa: comida de verdade. Chego no árabe e enquanto como uma esfiha de zátar muito gostosa, me pergunto o que será que aquele anúncio quer dizer. Eu não sei, nunca estive lá. Parece ser uma frutaria. Lanche natural, salada. Tudo orgânico. Uma comedoria de ar praiano. Talvez não. Pode ser um modo de chamar os pratos simples – e simples não quer dizer fácil, apenas sem pirotecnia. Naquele momento, eu já estava justamente trabalhando um texto sobre “comida de verdade” para o Lembraria. Era mais ou menos o seguinte: não comemos discurso, narrativa, receita escrita e boas intenções. Comemos comida e é com ela que construímos nosso repertório. Toda comida que tem alguma importância para alguém carrega sua própria verdade. Oquei, eu também fiquei confusa agora e achei que esse primeiro parágrafo parecia… um discurso.

Vou tentar outra vez. Em meados da década de 1960, todos os dias meu avô levava o almoço para a minha mãe na fábrica. Viajava na marmita de alumínio amassada pelo ir e vir da bicicleta uma porção de arroz branco, ovo frito e salada de tomate que era, suponho, guarnecida da verdade de cada um deles (Dona Odete preparava, Seu Sabino entregava, Maria Amélia comia). Eu desejo falar dessa verdade e dessa comida. Mas não só.

Comida de verdade é uma comida normal. Extraída dos ingredientes brutos (ou quase), ela pede atenção, esforço, escuta, olhar, paciência; precisa de alguma ou muita organização e um tratamento intuitivo e/ou técnico. Contato. Uma compra bem-feita. Da conversa com o açougueiro, por exemplo, sai um palpite para o caldo. Acém tem mais sabor. Músculo, menos gordura. Quem transforma os ingredientes em geral respeita o tempo das coisas, enxerga as mudanças da estação, se interessa pela trajetória. Funciona em qualquer tipo de cozinha: básica, de camping, industrial, tecnológica, sofisticada, da roça, retrô, alugada, própria, emprestada, improvisada.

Espuma, desconstrução e releitura, por mais enxaqueca e preguiça que possam provocar (em mim), são outras formas de preparar o que é de comer e têm toda uma verdade particular. O que faz afinal o prato feito do boteco perto da estação de trem e ao lado da biblioteca pública ser de uma verdade maior (ou menor) do que a de um virado à paulista encapsulado em laboratório e servido no formato de esfera, sobre uma colher, em um restaurante fino aonde todo mundo sussurra e até o ar parece ter sido desinfetado? Três bolinhas verdes para acompanhar? Nada, provavelmente. (A bolinha é caviar de couve, ensina o garçom antes de dar um giro diáfano em seu uniforme impecável e mais bonito que a minha roupa, para atender outra mesa.)

É possível acreditar que comida de verdade pega poucos atalhos industriais e se distancia do que conhecemos, se procuramos saber, a respeito de transgênicos e agrotóxicos e dos rótulos cheios de química e difíceis de decifrar. Para quem vira o rosto na outra direção e diz Ai, não… Que chato, se for assim não vamos comer mais nada, eu lembro de uma frase aplicada na abertura do filme A Grande Aposta/The Big Short, sobre os bastidores do colapso financeiro de 2008, a quebra do “banco imobiliário” nos Estados Unidos. A sentença, atribuída sem confirmação ao escritor Mark Twain, dizia que “It ain’t what you don’t know that gets you into trouble. It’s what you know for sure that just ain’t so”. É algo como “Não é o que você não sabe que te mete em encrencas, e sim as coisas que você tem certeza que não vão dar problema, mas que não são bem assim…”. Penso que nós podemos escolher o que fazer com o que sabemos, afinal, e não precisa ser ativista de comida, digamos, natural, para compreender que é importante prestar atenção e fazer escolhas.

Na segunda esfiha de zátar, aliás, eu já anoto em uma folha engordurada do meu bloquinho que os industrializados e processados também são comida de verdade ou guardam suas verdades em formatos artificiais de comida, se preferir. Bobagem, você pode dizer, eles só contam história de marketing ao estilo das peças criadas pelos mad men do Don Draper: enquanto o feijão dentro da lata estava prestes a explodir na panela, na sala de estar uma família “feliz” vivia um “tempo de qualidade”. A mamãe de cinturinha apertada tem um livro no colo, papai sem os sapatos e em mangas de camisa espia sobre o jornal aberto o menino e a menina deitados de barriga para baixo mexendo juntos em algum brinquedo. Na televisão ligada, a expectativa de o homem pisar na lua. No entanto, além do que não se vê em uma cena como essa – o pai talvez esteja pensando na secretária, a mãe na valise que guarda embaixo da cama para um dia fugir, os filhos que não suspeitam de nada, ou tudo completamente diferente disso -, a “comida anormal” também tem a sua verdade, um papel na história da alimentação e na vida das pessoas. Enlatados, pacotes de bolacha, temperos prontos, lasanhas congeladas. Chocolates que não são chocolates. Miojo cru (…).

É disso que eu desejo falar: a comida de verdade e a verdade da comida em seu aspecto comum ou extraordinário. E, sobre o Lembraria, aliás, recorro a um texto escrito antes de abrirmos as portas desse armário, desse “lugar de lembrar” no futuro do pretérito e de intercambiar o modo como cada uma de nós mergulha nas memórias: “Vivi Aguiar acha que banalizaram a memória afetiva. Vivi Zandonadi acha que pode ser, mas não consegue se esquivar quando falam as medidas imprecisas de um bolo bem contado. O que há para lembrar, o que não podemos esquecer? Se a Aguiar se move pela história e seus personagens, a Zandonadi trata da questão do gosto, de meter os dedos no pote de açúcar e lamber.” É isso. Ora vamos quebrar a louça, ora vamos tirar um prato cheio de vestígios e em seu lugar guardar outro “limpo em folha” pronto para receber novas porções de histórias de comida. A ver.

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  1. Ana Paula disse:

    Tenho degustado aos poucos o que encontro por aqui. Alimento minhas memórias, a alma sorri.
    Parabéns meninas!

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