O dicionário das comidas impossíveis

As lembranças de comida contam uma parte importante da história das pessoas. O Dicionário das Comidas Impossíveis surge dos depoimentos enviados, por escrito, para o questionário Fatias de memória  (clique aqui para participar e nos ajudar a escrever os próximos verbetes)

Por que “comidas impossíveis”? Porque acreditamos que comemos, também, para lembrar. Só que, dificilmente, conseguimos reproduzir o momento em que um determinado sabor foi impresso em quem somos, ou nos tornamos, com o passar do tempo.

“O Dicionário” é uma tentativa simbólica de revisitar esse lugar. Em construção.

Aquela que reúne todos em volta da mesa: a avó do João dizia que não gostava de cozinhar, mas ali nunca faltava bolo, porque vai que aparece alguém? Angu de rabada, mocotó, macarronada. Suas especialidades confortavam até nos velórios, como se, por instantes, até o defunto participasse das festividades. (Leia aqui)

Arroz com suã: arroz daquele tempo de arrumar o porco, tempo da corrente inquebrantável, quando do porco só não aproveitávamos o grito; um mundo de osso e tutano e uma carninha que se cozinhava lentamente em um tacho de arroz; arroz servido com feijão, mandioca derretendo e couve; arroz que alimentava meio mundo. (Leia em O arroz com suã que alimentava meio mundo)

Arroz mexe-mexe: ovo mexido misturado ao arroz; receita que acalma; um prato que a mãe fazia, se precisasse alçar do caldeirão das ideias um trunfo para o jantar; algo que a filha sempre adorou e sempre pediu. (Leia em O arroz mexe-mexe da mãe da Ana)

Banana-da-terra frita e café com leite bem gostoso: refeição simples e comum no interior do Acre; lanche da tarde para quem prato de comida tão bom não há, nem no melhor restaurante da cidade; banana comprida frita [banana-da-terra] tem cheiro que lembra pressa seguida de conforto; pode variar com arroz e ovo frito. (Leia em A banana frita com café do lanche acreano)

Bolinhos de carne moída da Dona Luzia: feitos com carne de boa qualidade, pão molhado no leite e pedacinhos de tomate, são bolinhos passados na farinha de trigo e fritos em óleo quente pela cozinheira que não gostava de cozinhar. (Leia em Os bolinhos de carne moída da Dona Luzia)

Bolo pelé: de chocolate, molhado por uma generosa calda de laranja derramada sobre a massa ainda quente; receita de receituário promocional distribuído em um Salão da Criança; bolo desaparecido. (Leia em Em busca do bolo perdido)

Bife acebolado da vó Celina: feito especialmente quando a neta vai visitar; carne cansativamente martelada por uma avó escorada na pia em virtude de bico de papagaio precoce; bifes preparados com muito carinho e muito vinagre, sempre em silêncio, porque a cozinheira falava pouco; bife nunca mais encontrado assim, tão bom, tão macio, tão curtido no vinagre. (Leia em Os bifes acebolados da avó Celina)

Bife à Noêmia: frito na banha de porco em frigideira de ferro, com muita cebola e tomate picado e amassado, o bife era finalizado em vinagre e sal e ia para o prato junto de arroz, feijão, farinha e muito molho; receita de aroma perturbadoramente bom.(Leia em O bife da tia Noêmia)

Bife perfeito na manteiga: bife que a mulher do primo ensinou a preparar, com um incremento “lá de casa”, porque passado na manteiga; para ser perfeito, basta tostar um lado de cada vez, jamais cedendo à tentação de virar a peça uma outra vez. (Leia em O pão com bife para D. Miú)

Bolinho de aipim de apartamento: bolinho impossível de comer sem fazer comparação; preparado na cozinha em Copacabana, onde uma menina miúda sentava ao lado da mãe para vê-la moldar um a um e depois fritar; bolinho que inquieta o pensamento, antecipando a falta que fará um dia. (Leia em O bolinho de aipim no apartamento em Copacabana)

Café da manhã do avô: misto quente que o avô fazia para o café da manhã; duas fatias de pão de fôrma meio queimado, com sal, muçarela e tomate; sabor que o menino nunca mais conseguiu experimentar. (Leia em O café da manhã do avô)

“Carijó” de arroz, feijão e carne: feita para o jantar, mistura de arroz e feijão fritos até sapecar na mesma panela de ferro em que a mãe fazia a carne do almoço; refogado melhorado pela gordura do molho e pela história extraída do fundo da panela. (Leia em Carijó de feijão e arroz na panela de ferro)

Cenas do passado recortadas na transparência: sopa de pão, frango assado cheio, macarronada, carne de panela, tomate e salame cortados em ponto de transparência. Sabores de um passado que foi presente adjetivo. (Leia em Cenas do passado em fatias bem fininhas)

Cheiro de comida de vó: o cuidado nas comidas tradicionais do campo, que saíam de uma cozinha tomada por vozes de mulheres; sentimento que não se repete, porque faltam figuras essenciais; churrasco, maionese, arroz; simplesmente grandioso. (Leia mais em O cheiro do cuidado, a comida do sítio)

Cozinha judaica: sopas de kneidale (bolinhas de matzá em caldo gordo de galinha), ou de kreplach (espécie de ravióli de carne), o gefilte fish (bolinho frio de peixe adocicado servido com chrein, raiz-forte com beterraba com uma indefectível fatia de cenoura pousada por cima do peixe), o arenque marinado com muita cebola e zimbro (o preferido do pai), os varenikes de batata com a cebola caramelizada por cima (o predileto da menina), tortas de ricota e de maçã com perfume inebriante e beigale, uma rosquinha trançada salgada e salpicada com gergelim. (Leia em O judaísmo que nascia pela boca)

Doce de laranja amarga: doce ritual longo, de molhos e banhos naquela parte branca da casca da fruta; espera demorada; receita do pai da Daniela, que não cozinhava, mas fazia curau e paçoca; laranja colhida no quintal; doce que a filha repete e não acerta, porque falta o pai. (Leia em O doce de laranja amarga do Seu Honório, o pai da Daniela)

Ensopado de pescoço de peru com agrião: receita que a faxineira do trabalho fazia com a vaquinha do almoço de sexta juntos e que até hoje faz salivar a moça “devota do pescoço”; prato que representa mil possibilidades em uma impossibilidade. (Leia em O ensopado de pescoço de peru com agrião)

Frango refogado no açafrão: frango e saudade refogados no “açafrão” da Chapada Diamantina, Bahia, onde a avó mora até hoje, numa vila chamada Ouro Verde; aroma que preenche a casa e que transporta a cozinheira para perto de sua mãe, fonte da melhor comida do mundo. (Leia em O frango da saudade refogada no açafrão)

Galo com massa fresca: temperados com ervas da horta, os pedaços do galo sacrificado na rinha cozinhavam por horas na panela de ferro, no fogão a lenha; para o acompanhamento, massa feita com os ovos que, vai saber, poderiam ter se tornado galos campeões. (Leia em Galos no fogão a lenha)

Nhoque de batatas, sempre aos domingos: o prato preferido do pai, feito pela mãe; nhoque que a filha ajudava a chegar no ponto certo; uma receita que sabe à cozinha italiana, preparada mais por amor do que por gosto; gosto adquirido no preparo por amor. (Leia em O nhoque de batatas no almoço de domingo).

Ovos de Páscoa recheados de rapadura de doce de leite (e amendoim): tradição da interminável vó Marieta; cascas esvaziadas, lavadas, coloridas uma a uma e cheias de pedacinhos de doce de leite com amendoim; tradição quase centenária. (Leia em Os ovos de Páscoa da ‘interminável’ vó Marieta são recheados de doce de leite e amendoim)

Panquecas fritas da vó Sofia: feitas pela avó lituana, mãe da mãe, que morava na Água Rasa e não cozinhava bem; panquecas incríveis, crocantes, recheadas de queijo e fritas numa frigideira cheia de óleo quente. A mãe, excelente cozinheira, não consegue fazer igual. (Leia em As panquecas fritas da vó Sofia)

Pão molhado e temperado com azeite, alho e sal: pão molhado na água, depois espremido, e temperado com bastante alho, azeite, sal e uns temperos que nem sei; lanche de aplacar fominha no meio da tarde, num sábado; lanche preparado pelo pai para as filhas pequenas; lanche que naquele momento é amor. (Leia em O pão molhado e temperado)

Pastéis da vó Ondina: quitute plural de avó boa no trivial de dia a dia de quem nunca teve muito dinheiro, mas tinha horta no quintal; pastéis de fazer a gente feliz; salgado de rainha de “rodízio” e “carretilha”; massa fina e translúcida à base de farinha, sal, água gelada e não sei o quê, recheada de carne moída, ovo cozido e azeitonas picados bem miudinho; fritura de sabor que nunca mais existiu; sabor que, mesmo imitando, não se pode imitar. (Leia em Os pastéis da vó Ondina)

Pêssego em calda com creme de leite: memória com sabor de despedida e de recomeço; último desejo da mãe da Ana, presente de aniversário de sua filha. (Leia em O Pêssego em calda com creme de leite)

Polenta tostada no fogão a lenha: do tempo em que fazia frio de verdade no inverno; café da manhã preferido; polenta assada na chapa do fogão, com uma crosta que se forma pelo calor; polenta tostada colocada pela mãe no prato fundo, mais leite, açúcar cristal e café; polenta “que salvou o mundo”. (Leia em A polenta do café da manhã no fogão a lenha)

Porco na lata: alimentação para os meses seguintes; trabalho que prosseguia até tarde; um ala das mulheres temperava, refogava e cozinhava a carne; carne depois guardada em latas; prolongamento do prazer, porque a cada dia em que a mãe enfiava a concha naquela lata a carne que saía era mais saborosa; quinze dias depois, divina. (Leia mais em O porco, para engordar, o chão tem que afundar)

Quibe em Três Lagoas, sempre aos domingos: um quitute de família muito esperado pela menina; salgado precedido de ritual de aumentar a fome – lavar o carro, podar as plantas, vestir um tecido de festa -; quibe do bar da vó. (Leia mais em Quibe: sempre aos domingos)

Rãs fritas do Rio Tietê: fisgadas na enchente do rio paulistano, sempre nas noites de verão, lá nas décadas de 1940 e 1950; bastava tirar a pele e as vísceras da rã, lavá-la e fritá-la na frigideira, com muito óleo ou azeite. (Leia mais em Especial: Dalva e as rãs fritas do Rio Tietê)

Reco, o mingau da Dona Maria Jovita: feijão do dia amassadinho e umedecido em fervura de pimenta-brava com óleo para dar brilho e farinha de mandioca para encorpar; mistura cozida na panela e mexida com colher de ferro, produzindo um chamado infalível para os pequenos; segredo de família. (Leia mais em A colher de ferro e a cantilena do mingau de feijão com pimenta-brava)

Sonho recheado de goiabada: massa frita que envolvia pedaços de goiabada; massa que a mãe colocava para descansar na parte de cima do beliche, na tentativa de escapar do filho que adorava comer o bolinho ainda cru; bolinho que ninguém podia comer antes de terminar de fritar toda a receita, porque desandava. (Leia em O sonho recheado de goiabada)

Sorriso de mãe: não é bem uma comida, são várias; arroz, feijão, bife, ovo frito; é voltar para casa depois de grande e pedir para ela ensinar; é ligar só para dizer que esqueceu como faz e ouvir, pela voz, que ela sorri, porque consegue transmitir ao filho um conhecimento que a faculdade não dá. (Leia mais em O sorriso da mãe)

Sopa de pão do vô Sabino e da vó Odete: primeira lembrança de gosto de uma neta; receita inventada pelo avô para uma boca vazia de dentes, sorriso avulso; pedaços de pão rasgados ao leite, café e açúcar, no fim de tarde depois da escola e com medo do Minotauro; receita praticada pela avó que, quando queria variar, fazia ciranda de fatias de pão e manteiga ao redor da xícara de café com leite, tudo sobre um prato colorex. (Leia em A sopa de pão do vô Sabino e da vó Odete)