ATENÇÃO: Abaixo, alguns spoleirs da série Bridgerton, da Netflix.

No meio da madrugada, insone, Daphne Bridgerton quer tomar um copo de leite na cozinha. Encontra o irmão mais velho, Anthony, nas escadas, e ele sugere que acordem um criado para a tarefa. Ela recusa. Os dois descem para o andar, geralmente baixo, que concentra a “área de serviço” da casa. Na cozinha, em frente a um fogão de ferro a carvão (que, no Brasil, será difundido somente a partir da segunda metade do século XIX sob o nome de “econômico” ou “americano”), os dois hesitam:
– Vamos acendê-lo?
– Bem, vai em frente.
– Eu?
– Eu não sei como fazer.
– Acha que eu sei?!
– Leite frio, então!
E os dois desistem de acender o fogão e aquecer o leite. Vai frio e direto da garrafa mesmo.

Alguns episódios mais tarde, é a vez de outra mulher insone descer as escadas em direção à cozinha. Ela não quer preparar um leite quentinho, mas um chá abortivo. Marina Thompson está grávida de um homem ausente, algo que inviabiliza, ou ao menos dificulta, suas possibilidades de um futuro “honrado” nos termos de sua época. Vem de uma criação menos privilegiada que a de Daphne. E não parece ter qualquer dificuldade em colocar a chaleira no fogo para aquecer a água de sua bebida. Nem sequer acompanhamos o acendimento do fogão; ela simplesmente prepara o chá, mesmo estando sozinha na cozinha, sem a criadagem.
Parece haver aí, nessas duas cenas tão próximas e tão distantes da primeira temporada de Bridgerton (Netflix), mais do que o humor sugerido pela primeira ou o temor implícito na segunda. Daphne, branca e de família nobre, “diamante raro” no mercado casamenteiro da Inglaterra de início do século XIX, vem sendo preparada para ser esposa e para administrar uma casa (como contará à governanta de seu futuro palacete, quando se casar). Não sabe, nem sequer tem noção, de como as tarefas domésticas mais básicas, como acender um fogão, seriam executadas – para isso, ela conta com um enorme séquito de criados e cozinheiras, que, como mostra Downton Abbey, permanecerá assim em meio aos ricos e nobres pelo menos até meados do século XX.
Por outro lado, Marina, negra e de origem pobre, preterida pelo possível pretendente (irmão de Daphne, por sinal), parece conhecer de perto, e de maneira automática, as tarefas que seriam próprias das criadas. Esperava-se, em algum momento de sua criação, que ela se tornasse uma delas? É provável que sim. O motivo de sua ida à cozinha – um ambiente doméstico que aparece poucas vezes na série – é completamente diferente do de Daphne: se esta vai para a cozinha no meio da noite para refletir por sua paixão ainda enrustida pelo Conde na companhia de um leitinho quente, a outra corre até lá no desespero, tentando interromper uma gravidez que toma a forma de um obstáculo para sua vida naquela sociedade.
São universos distintos que se encontram, junto ao fogão, de madrugada, num momento de reflexão ou ação que envolve os corpos e as fases pressupostas na trajetória das mulheres daquele tempo: o casamento, um contrato angariado às custas de diversas estratégias de vivência e sobrevivência (vestir determinadas roupas, se portar da maneira “certa”, dominar a linguagem corporal dos bailes, driblar as fofocas criando novas…); e a gravidez, desejada para aquelas que se casam, mas extremamente preocupante para as solteiras, que armam seus próprios meios para interromper a gestação, ferindo a si mesmas para seguirem os parâmetros de “honra” da época.