Há mais de quarenta anos, em dezembro de 1974, o paulistano Eduardo de Oliveira, ainda criança, escreveu uma carta à avó Madalena (foto acima), dizendo que pretendia visitá-la antes do Natal. Para isso, no entanto, impunha uma condição:
[…] ao chegar aí, espero encontrar meu bolo favorito como a senhora sabe. […] Aqui termino minhas poucas palavras e espero e persisto em meu bolo, que não deve falhar, pois só em pensar me dá até água na boca, e assim me despeço desejando um abraço e um feliz natal à senhora e minhas primas e tios.
É curioso que, na cartinha, Eduardo nem se dê ao trabalho de especificar o tipo de bolo desejado; no idioma compartilhado apenas entre ele e a avó, expressões como “bolo favorito” ou “meu bolo” já diziam tudo: subentendia-se que o menino salivava pelo singelo bolo de fubá, que, para ele, por ser feito pela carinhosa Madalena, era o melhor do mundo.
Hoje vendidos em casas e franquias especializadas, espalhadas pelas grandes cidades, os bolos de fubá e outros dos chamados bolos caseiros talvez sejam os principais exemplos de uma “marketização” das lembranças relacionadas à comida. Mesmo para quem não teve avó quituteira, eles frequentam a zona de conforto e saudade de uma memória coletiva construída a partir de Donas Bentas imaginárias – e muito bem explorada pela indústria de bens de consumo.
De qualquer maneira, esses “bolos caseiros” têm participação interessante na história da culinária que se desenvolveu na zona que podemos chamar de “caipira”, ou Paulistânia, a extensa área de ocupação bandeirante que atualmente corresponde às regiões de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e parte do Paraná, do Espírito Santo, do Rio de Janeiro. São prováveis descendentes do pão de ló português – já descrito em 1680 no livro de Domingos Rodrigues, Arte de cozinha – que, em contato com as farinhas de milho e de mandioca locais, foi ganhando novas versões.
Em 1727, Rodrigo César de Meneses, o então governador da capitania de São Paulo, em expedição às minas de Cuiabá, mencionou, no relatório escrito por seu secretário e enviado a Portugal, que do milho “se faz farinha que supre o pão, a canjica, fina para os brancos, a grossa para os negros, os cuscuz, bolos, biscoitos […]”¹, registrando a existência de bolos preparados a partir desse ingrediente, ou de sua farinha.

No entanto, se a origem do bolo de milho parece clara, a do bolo de farinha de milho moída – fubá – ainda se mostra nebulosa. Usado essencialmente para a ração dos animais ou para o angu dado aos escravos, o fubá como ingrediente foi por muito tempo preterido pela população livre, o que faz da atual associação do bolo de fubá com um “quitute de sinhás” um mistério. Como, afinal, um produto antes relegado aos escravos pode ter se tornado a base para um dos bolos mais comuns e por vezes relacionado ao que se convencionou chamar de “cozinha de fazenda”?
O fato é que, assim como o angu, o bolo de fubá surgiu da cozinha da pobreza, dos escravos das minas, ou, no caso das regiões com menos presença de cativos africanos, como São Paulo, “do que tinha” e restava da produção de subsistência. O anônimo autor que escreveu os documentos recolhidos por Caetano da Costa Matoso, ouvidor-geral das minas de Vila Rica, entre 1749 e 1752, dá uma pista interessante sobre como teria se dado o desenvolvimento desses bolos.
Primeiramente, [o milho] serve em grão para sustento dos animais domésticos e silvestres. Dele se faz o “fubá”, assim chamado nas Minas e, em Portugal, farinha; deste, o angu para os negros, cozido em um tacho de água até secar; só se diferencia da broa em estar cozida no forno e levar sal.²
A broa, assim descrita, seria, portanto, a massa de angu com sal assada no forno. Parece razoável constatar que, com açúcar no lugar do sal, o angu assado no forno tenha dado origem ao bolo de fubá. Essa transformação de angu em broa ou bolo, se é que ocorreu dessa maneira, pode ter acontecido ainda no século XVIII, quando a economia açucareira se desenvolveu no sertão da Paulistânia, depois do declínio da mineração. Talvez o bolo de fubá tenha sido desenvolvido por escravas ou mulheres pobres para dar “função” doce a esse preparo tão barato e tão comum.
Tempos mais tarde, por volta de 1850, o colono suíço Thomas Davatz, em seu livro Memórias de um colono no Brasil, dizia que uma maneira de tornar “tragável” o indesejado fubá era justamente transformando-o em bolo. Na fazenda Ibicaba, onde viveu, nos arredores de Limeira, ele lembrava que:
Se foram mal debulhadas – como é frequente -, saindo os grãos de mistura com cabelo de milho ou com pedaços de sabugo; se aparecerem bichados – o que também acontece – ou se vêm acompanhados de impurezas, consequência do mau tratamento a que são sujeitos por parte dos negros, são então pisados em uma pedra de moer, tão primitiva que o produto, na melhor hipótese, tem uma consistência de saibro grosso. E é semelhante produto, tal como está, que vai constituir um dos mantimentos principais dos colonos: o fubá. Estes por sua vez tratam de tornar tragável esse ingrediente, passando-o por uma peneira mais ou menos fina. Com algum trabalho podem-no obter assim de castas diversas. A primeira, a mais mimosa, serve para se fazerem bolos e broas ou sopa. A segunda é empregada para uma papa ou coisa parecida, mas onde não entre leite. A terceira que compreende quase metade dos produtos é dada aos porcos ou às galinhas.³
Do fubá, portanto, usava-se sua parte mais nobre – “mimosa”, da primeira etapa do processo de moagem – para os bolos e para as broas. Logo, a erva-doce do quintal, então usada para chás terapêuticos e pastas de dente, apareceria em tudo quanto fosse receita de quitute e se tornaria também companheira indispensável do bolo de fubá. Pensando alto, talvez tenha sido ela a responsável por incrementar essa antiga receita de pobre e por, quem sabe, levá-la para as mesas de quitandas das sinhás.
No livro Doceiro nacional, editado na década de 1880, cerca de 30% das receitas de biscoitos, bolos e pães de ló incluíam a erva-doce entre os ingredientes; em seu Grande dicionário culinário, de 1873, Alexandre Dumas já demonstrava até certa irritação com ela, a que chamava anis, dizendo ser, em Roma, “um problema para os estrangeiros, que não conseguem escapar nem de seu sabor nem de seu cheiro, já que está presente tanto nos doces quanto no pão”. Dessa possível “moda” oitocentista, importada ou não da Europa, restaram os biscoitinhos e o clássico bolo de fubá com erva-doce, ainda hoje tão usual no Brasil.
A origem de bolos como o de fubá ainda ressoa na memória de velhas cozinheiras como Dona Maria, no Vale do Paraíba, em São Paulo, que, no vídeo acima, editado como parte de uma bela série produzida pelo pesquisador Francisco Lacaz Ruiz, o Chico Abelha, mostra como se faz para assar o bolo de fubá em fogões a lenha desprovidos de forno. Seguindo um método que se assemelha ao indígena, Dona Maria mistura os ingredientes numa panela e a cobre com um recipiente (o “testo”), que será, por sua vez, recoberto de brasas (corra para os 11 minutos do vídeo para ver esse preparo), garantindo assim que o bolo asse de todos os lados.
Na cidadezinha de Paracatu, em Minas Gerais, quase na divisa com Goiás, algumas entrevistas realizadas pelo Museu da Pessoa, neste ano, também revelaram histórias de bolo. Aos 75 anos, Dona César – que, apesar de mulher, foi registrada como César Gonçalves Santana – contou detalhes de uma receita que se tornou uma espécie de símbolo da cidade: o bolo de domingo, feito de fubá não de milho, mas de arroz, que antes era colocado para fermentar sozinho (com a ajuda de enzimas retiradas de miúdos de animais), dispensando o uso dos atuais fermentos industrializados.
O bolo de domingo, eles falam que é dos escravos e é. O bolo de domingo, hoje a gente já tem o açúcar, já tem o queijinho que as pessoas gostam de pôr por cima e naquele tempo dos escravos não era assim. Porque eles não tinham açúcar, não tinham o queijo, o que eles faziam? O bolo de domingo daquele tempo eles faziam com o arroz que eles tinham, o açúcar sujo ou a rapadura. Eles faziam com a rapadura ou com o açúcar sujo, que eles mexiam com aquilo, né? Que era o alimento deles, que eles faziam pra eles, né? Aí era feito na palha de banana, que eles faziam, palha de milho. E hoje a gente já tem as latinhas, né? Aí o povo fala: “Ah, o bolo dos escravos”. Mas o bolo dos escravos mesmo é esse aí, feito do fubá de arroz com rapadura. E feito na palha de bananeira, não tinha queijo, não tinha nada, era o arroz, a água, a rapadura e o cravo que eles punham. Aí o bolo ficava escuro porque o cravo fica escuro, né? Agora hoje não, nós fazemos o bolo de domingo mais facinho, a gente põe o açúcar. E tinha a banha, que ele é feito com banha, a banha é tradição, a gente faz com banha mesmo. Hoje a gente faz com a banha, o fubá do arroz, mas a gente já coloca o açúcar. Já tirou o cravo, a gente põe erva-doce. Porque, quando você põe o cravo, ele fica escuro e o povo fica com nojo, né? Aí hoje a gente põe o açúcar, já põe o queijinho ralado quando ele tá na forma, põe um queijinho ralado por cima. A gente procura melhorar ele cada dia mais. Naquele tempo esse bolo de domingo chamava “maná“, que os escravos falam “maná”. […] Ele não leva leite, nem ovo. Agora o fermento deles é que eu não sei o que é que era, porque de primeiro não tinha esse fermento, né? O fermento eu não sei, que leva fermento esse nosso, era o fermento que eles mesmo faziam.
A descrição do bolo de domingo e de sua história, feita pela Dona César, é esclarecedora em muitos sentidos. Primeiro, porque o relaciona aos escravos, ao não uso de queijo ou de açúcar refinado (estes restritos apenas às cozinhas mais abastadas), e a uma receita chamada “maná”, que faz lembrar os chamados “manés pelados” ou “manuês”, também tradicionais na região caipira e preparados, em geral, a partir da mandioca puba – ou seja, fermentada naturalmente, como o fubá de arroz da receita – e assados em folhas de bananeira.
Em segundo lugar, Dona César menciona a produção de arroz que, nessa área entre Goiás e Minas, era grande já desde meados do século XIX (tanto que o “bolo de arroz” fermentado aparece também entre as receitas tradicionais goianas), e de banha de porco, que ela ainda prefere a outras gorduras mais comuns atualmente para o preparo do doce. Por fim, Dona César fala do fermento, que ela sabia ser diferente, mas que hoje é substituído pelo “nosso”, ou seja, pelo pronto dos supermercados. A tradição da banha e a “modernidade” do fermento em pó convivem em seus bolos de domingo, que mostram já no apelido a valorização de seu uso atual – assim como “roupa de domingo”, são especiais, apenas para “uma vez” na semana.

Dona César, a seu modo, ensina a fazer a receita.
Vocês viram ali uma bandeja de fubá de arroz? Você bate ele no pilão, e eu já soquei muito, agora não posso porque a pressão é alta. Aí a gente soca no pilão (hoje eu faço no liquidificador). Depois eu mostro a ocês o fubá. Aí eu já preparei ontem, quando é dia de sábado eu já começo, uma hora dessa eu já estou começando. […] é já escaldando bolo, de noite preparo e deixo dormindo, no outro dia que assa. É. Aí duas horas da manhã, todo domingo, eu estou no forno. Aí eu vou até às dez. Dez, dez e meia. Aí se dá tempo, tem vez de fazer 300 bolos. Aí se ainda tem encomenda que não tem bolo eu faço de novo, estou precisando do dinheiro, né? Aí vou escaldar mais bolo e faço. Eu pego aquele dinheiro e fico muito satisfeita, estou pagando aquelas continhas até o mês chegar, um dinheiro meu. É bom. A vida de antigamente era melhor.
A casa de Dona César, que também prepara pão de queijo aos domingos, é a “casa de bolos” de Paracatu, a que todos recorrem para incrementar as quitandas da tarde ou as reuniões em família.
Leia mais sobre a vida de Dona César e sobre outras histórias na coleção Querida vovó, quero bolo de fubá, no site do Museu da Pessoa.
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Outras coleções do Lembraria para o Museu da Pessoa:
- Bolos de noiva: o que eles dizem sobre a história dos casamentos.
- Fogão de quilombo: memória e realidade.
- Comida de avô: no lombo do burro, no meio da tropa.
- O arroz e o feijão: histórias de um encontro culinário.
- Açúcar de aniversário: sem docinhos, não tem festa.
- O verso da comida: histórias de fome.
- Cozinha imigrante: receitas judaicas em trânsito.
- Memórias de supermercado: a loja que revolucionou a cozinha.
- Saberes (e sabores) guardados: as receitas de uma mestre griô.
- Comer e beber a cidade: os estabelecimentos que lembram São Paulo.
- Sabores de infância: histórias de comida que lembram os tempos de criança.
Parceria:
- Notícia sexta prática. In: Taunay, Afonso de. Relatos monçoeiros. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1976, p. 113.
- Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, p. 785.
- Davatz, Thomas. Memórias de um colono no Brasil (1850). São Paulo: Edusp/Martins Editora, 1972, p. 11-12).