
Fim de festa de aniversário do filho da vizinha, do casamento do amigo, do batizado da sobrinha. Tenho visto nos pratinhos de bolo largados aqui e ali camadas de cobertura dispensadas de propósito. Chantilly de canto. Glacê esquecido. Uma plaquinha inteira de pasta americana mordida “só para experimentar”. Devo fazer justiça à ganache de chocolate, ao brigadeiro e àquela cobertura açucarada que forma uma casquinha sobre o bolo de cenoura: em anos de observação, nunca as vi sobrar. Mas isso é outra história. Venho defender o glacê, o chantilly, a pasta americana, o marshmallow. Nos bolos de festa, ou seja, em momentos extraordinários, essas coberturas aproximam a confeitaria da arte de fazer onda, literalmente, e de esculpir formas de comer – as nossas curvas, eventualmente desalinhadas pelo lanche, a gente deixa para editar em outra oportunidade.
A hora do bolo é de se deixar levar pela confusão lúdica de ver, querer e comer. Sem culpa. Mas repare como hoje em dia parte dos convidados afasta com o garfinho, um meio sorriso e alguma desculpa, aquele que seria o passaporte para a sucursal do inferno das dietas. Há os que calculam o desconto: “Se não comer a cobertura, que concentra muito mais açúcar, posso me dar duas fatias de bolo”. Enxerida, eu diria: coma logo os dois pedaços completos, porque a vida é muito dura e não tem festa todo dia.
Quando as pessoas começaram a achar que abrir mão da cobertura de bolo, mesmo que muito benfeita, equilibrada e gostosa, poderia de alguma forma melhorar a vida? Na verdade, não melhora.
Não se trata obviamente de desprezar legítimas restrições alimentares, mas de refletir um pouco sobre as escolhas que fazemos rotineiramente ou, pelo menos, nos dias de festa e como somos assombrados por questões que, muitas vezes, não são exatamente assim.
Pensei nisso ao planejar o primeiro aniversário da minha filha. Sabia que o bolo seria branco, leve e úmido, com recheio de fruta. A gente queria geleia de damasco, porque a pequena desde cedo gosta de damascos secos. A dúvida era a cobertura. Quando descrevi a receita desejada para uma cozinheira, ela explicou que bolo fofinho descarta, por exemplo, a hoje onipresente pasta americana – há boleiras que nem fazem outro tipo de cobertura, são especializadas na mistura feita de água e açúcar e ignoram as demais. Ela é mais pesada que as opções cremosas e precisa de uma base firme. O acabamento com glacê (clara de ovo batida com açúcar e suco de limão até ficar consistente) ou chantilly (creme de leite fresco e açúcar) seria mais adequado para o que eu procurava (pão-de-ló). Fiquei contente, porque nosso convescote tinha uma levada retrô. De sal, comemos batata bolinha temperada e carne desfiada no minipão francês, feitas pela minha mãe. De açúcar, brigadeiro, beijinho e cajuzinho.
Pois bem, fui atrás do glacê perfeito. Mas não foi muito fácil. Primeiro consultei várias confeiteiras, que tentaram me convencer de que o que eu queria estava “fora de moda”. O bacana é a pasta americana. Lá vem ela outra vez, pensei e até dei uma chance. Fui a degustações com esse tipo de acabamento e comi bolinhos deliciosos e lindos e outros nem tanto. Preparada com açúcar impalpável, a pasta americana é também bem doce – para ter uma ideia, a proporção é de 2 a 3 quilos de açúcar para 250 mililitros de água, pouco mais de um copo. “Não se preocupe. Quase todo mundo tira antes de comer”, disse-me a vendedora de uma loja de bolos. Claro, refleti no meu estranhamento glicêmico: comer cobertura é demodê. Na era da pasta americana e dos bolos decorados, as coberturas se tornaram figurantes no prato e não são devoradas. Uma pena! Quando as pessoas começaram a achar que abrir mão da cobertura de bolo, mesmo que muito benfeita, poderia melhorar a vida?
Devorei todas que encontrei no caminho. A massa de modelar permite fazer quase tudo: uma flor ou um jardim inteiro, um castelo, a princesa e os súditos. A linda joaninha, o carro, o circo de pulgas. O que imaginar. A pasta americana faz lembrar os filmes do Tim Burton e suas animações em stop-motion. Mas, por mais encantadoras que pudessem ser as possibilidades, eu não estava certa se queria comida cenográfica. Ainda não – por enquanto, tiro proveito da prerrogativa da escolha, já que minha menina só tem 1 ano e ainda não escolhe o tema pelo personagem do desenho.
Entre idas e vindas, esbarrei na foto do bolo lindo coberto de glacê no site da Tati Leme, uma produtora especializada em festa infantil e que me apresentou à confeiteira autora da peça. Essa, por sua vez, topou fazer do jeito que eu queria. “Minha produção é 98% pasta americana e 2% glacê ou chantilly, que é a mais leve, à base de creme de leite fresco e pouco açúcar. Mas quase ninguém liga para isso atualmente. Todos querem pasta americana, portanto é sempre bom poder variar”, disse Simone Monteiro. Antigamente, Dona Olga, a avó da Simone, era quem assava bolos para fora, e foi em seus registros que a moça baseou sua confeitaria caseira.
E assim cheguei àquela tarde de sábado. Uma cordilheira de glacê. Vintage, retrô, antigo, fora de moda. Como quiser. Parece que todo mundo gostou do pão-de-ló branco, leve e muito fofo recheado de geleia artesanal de damasco e coberto por picos glaceados firmes na superfície e cremosos por dentro. Textura aerada tingida em tons pastéis.
A gente (falo por mim, na verdade, porque não sei dos outros) segurava a cobertura na boca por alguns segundos para sentir o doce se ajustando ao suco de limão. Suspiro. Nenhum sinal de rejeição nos pratinhos deixados para trás. No dia seguinte, domingo, o bolo divino estava ainda mais gostoso.
Quando era pequena, aliás, sempre duvidei se o melhor da festa era mesmo esperar por ela enrolando e embalando os brigadeiros na véspera, se era passar o dedo na cobertura do bolo e fugir para lamber antes que cantassem parabéns ou, ainda, comer o que sobrasse no dia seguinte, em uma manhã tranquila e preguiçosa, quando a expectativa passou e tudo já está bem mais calmo. Agora que sou, em termos, grande, digo que o melhor da festa vem depois. Sem arrependimentos pela cobertura devorada, seja ela qual for. A vida já tem um amargor típico que é do jogo. Adoçar de vez em quando não pode fazer mal algum. Coma um pedaço hoje e guarde outro para repetir amanhã – e lembrar como foi bom.
*Este texto foi escrito por Viviane Zandonadi para a revista Vida Simples de fevereiro de 2013. Para ver o layout original, por favor, clique aqui.
doce! aqui em casa a gente também cultiva o prazer de aniversários com bolo caseiro. a festa começa com dias de antecedência e, com sorte, sobra um pedaço pro dia seguinte. ❤
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É divino! P., ontem nós lemos “A incrível história do menino que não queria cortar o cabelo”. Ao final, a menina disse: “‘Para mim’, mamãe, a Penélope poderia escrever uns quatrocentos e quarenta e quatro livros como este…” Acho que temos um preferido.
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