“Nessas horas de solidão, ia para a cozinha, e tirava dois dedos de prosa com a cozinheira. A cozinheira escolástica é um tipo especial. Quase sempre se chama Joaquina, Benedita ou Antoninha. É criatura que sabe a crônica da estudantada, seus vícios e costumes, quais os vadios e os estudiosos; tem uma lista das namoradas de cada um.
A cozinheira é uma classe uniforme: vista uma, estão todas vistas. Quando virdes uma mulher, branca ou morena, de tamanquinhos verdes, baeta de pano surrada, balainho na cabeça, falando muito em hipótese, probabilidade, sofisma, cinismo, compêndio, dissertação e outros vocábulos que se reproduzem nas palestras acadêmicas – post prandium, dizei que é uma cozinheira de estudante. Até n’um ponto financeiro são uniformes: do dinheiro para as compras furtam sua pataca, desculpando-se com a verba dos cheiros, muito embora o jantar da república só cheire a dieta.
As cozinheiras têm assim também uma verba das eventuais. Ainda são uniformes na arte culinária: parece que os jantares de todas as repúblicas acadêmicas que saem da cozinha vão por uma tarifa. Picadinho (prato sacramental), couves, galinha velha, e uma tintura de feijão. Ovos quando há. Sobremesa banana frita ou marmelada no dia 1º, até onze; daí por diante, palitos.
Nesta semana de aniversário de São Paulo, o picadinho paulista virou prato especial de um festival organizado por alguns restaurantes. Em uma semana mais distante, a de 22 de junho de 1866, um paulistano publicava no jornal Diário de S. Paulo um texto relembrando seus tempos de estudante na Academia de Direito (atual faculdade do Largo de São Francisco) e citando como “prato sacramental” daquele período o mesmo picadinho paulista.
A receita parecia ser, naquela época, comum nas refeições das repúblicas, geralmente preparadas por mulheres pobres ou por escravas e escravos – estes, muitas vezes, eram trazidos das fazendas das famílias dos estudantes mais abastados como “empréstimo” durante o período de bacharelado na capital. O escravo Leôncio foi um desses cozinheiros “escolásticos”, como definiu o anônimo autor do texto publicado em 1866.
Segundo conta Affonso de Freitas, em seu livro Tradições e Reminiscências Paulistanas, de 1921, Leôncio chamava-se, na verdade, Clemente José de Carvalho, era filho de escravos e trabalhava na república em que vivera o então futuro advogado Alfredo Pujol. Em um discurso de 1906, Pujol mencionou o leal cozinheiro que, segundo ele, não só sabia fazer uma boa receita com o peru roubado de quintais alheios pelos próprios estudantes, como também intercedia por eles na ocasião dos exames finais, junto aos rígidos professores da faculdade.
A relação dos estudantes com as cozinheiras – e os cozinheiros – de suas casas parecia ser bem próxima, apesar da reclamação sobre os jantares que “cheiravam a dieta“. “Parcas, modestas e frugais” eram também as triviais receitas caipiras, incluindo o picadinho, das recordações de outro ex-aluno de direito, Luiz de Almeida Nogueira, publicadas no livro de memórias A Academia de São Paulo, lançado em volumes entre 1907 e 1909.
Lembrava Almeida Nogueira que…
“As refeições eram parcas, modestas e frugais; às horas de costume, de 8 às 9, o almoço; de 2 a 3, o jantar, e, à noite, ordinariamente, chá com pão e biscoitos ou bolachas…
Os pratos principais: sopa, não muito generalizada ainda, cozido, feijão, arroz, ervas, carne ensopada, ou antes afogada e assada, de vaca, porco ou carneiro, não raro galinha; nos dias festivos, peru recheado, leitões, empadas etc., tudo à antiga paulista.
Academicamente, o tradicional picadinho, em que todas as cozinheiras paulistanas se faziam peritas e era prato obrigatório no almoço.”
Almeida Nogueira chegou a citar uma dessas cozinheiras “peritas” no picadinho: Tia Silvana. Não dá para saber se a tal tia era empregada de alguma república, ou se havia se dedicado a vender o prato em sua casa, quem sabe em um salão improvisado, quem sabe por encomenda. De qualquer maneira, o estudante se preocupou em registrar a receita do famoso picadinho dela, que reproduzimos logo abaixo.
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Picadinho da Tia Silvana, à antiga paulista
- “Toma-se um quilo de alcatra ou filé, carne de primeira.
- Lava-se, enxuga-se bem, bate-se, corta-se em pedacinhos pouco maiores que um dado.
- Refoga-se com cebola picada.
- Deita-se-lhe depois um copo de água quente, um buquê de cebolas em ramas, salsa e uma folha de louro.
- Ajuntam-se alguns pedacinhos de toicinho fresco, sal e pimenta.
- Deixa-se ferver a fogo brando até que a carne fique bem cozida, tendo-se o cuidado de aumentar a água sempre que venha a secar.
- Ajunte-se em tempo batata picada, que não deve ficar muito cozida.
- Nada de engrossar o caldo: ao contrário, deve ser abundante e bastante aquoso.”
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