
É na ausência total de alimentos que parece ficar ainda mais evidente o quanto dependemos do comer (e do cozinhar) para reforçar nossa identidade, nossa autonomia, nossa liberdade. Em mais uma coleção criada a partir do acervo do Museu da Pessoa, reunimos histórias de vida que demonstram essa ideia ao remeter não à comida, mas ao “verso” dela: a fome. Ambos os lados, o da presença e o da falta, compõem uma mesma questão – a alimentação –, e a oposição que representam não tem nada de novo: vem intrigando estudiosos desde, pelo menos, Luís da Câmara Cascudo.
Ao publicar História da alimentação no Brasil, em 1967, o folclorista potiguar mencionou essa dualidade entre comida e fome logo no prefácio. No texto, contou que sua intenção inicial era escrever os dois volumes ao lado de Josué de Castro, nutrólogo e cientista social renomado, que havia lançado o livro A geografia da fome em 1946, considerado um marco nos estudos sobre esse preocupante – e ainda notório – problema brasileiro. O plano, no entanto, não foi adiante. Concluiu Cascudo que:
“O anjo da guarda de Josué afastou-o da tentação diabólica. Não daria certo. Josué pesquisava a fome e eu, a comida. Interessavam-lhe os carecentes e eu, os alimentados, motivos que hurlent de se trouver ensemble [se anulariam].”
Se, para Josué de Castro, o alimento satisfazia uma necessidade fisiológica, para Cascudo, ele só tinha sentido ao ser processado como comida, como resultado de um gosto/paladar construído e compartilhado por meio da cultura de um povo, de um lugar, de um tempo. Essa discussão sobre a oposição entre fome e comida vai longe. Por aqui, o que nos interessa é que ambos os conceitos estão unidos na formação de alguma identidade brasileira.
Ainda que de forma inconsciente, a cultura da fome está em nossa cultura alimentar e não deixa de ter reflexos bem visíveis. Continuamos, afinal, a ser ensinados a “não deixar resto”, a “raspar” o prato; a ter a convicção de que comida farta é sinônimo de comida boa; e a repetir ditados como o que diz ser a fome o melhor tempero…
Nessa toada, seguimos por dois caminhos:
- Um deles nos levou a Nair, uma senhora boa-praça, que aprendeu a profissão de cozinheira para nunca mais passar fome na vida.
- O outro nos fez chegar até Jango (não o Goulart) e os anos da Segunda Guerra, quando o Estado Novo “inventou” o racionamento de alimentos no Brasil.
Veja a coleção completa, com mais histórias, no site do Museu da Pessoa.
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Outras coleções do Lembraria para o Museu da Pessoa:
- Cozinha imigrante: receitas judaicas em trânsito.
- Memórias de supermercado: a loja que revolucionou a cozinha.
- Saberes (e sabores) guardados: as receitas de uma mestre griô.
- Comer e beber a cidade: os estabelecimentos que lembram São Paulo.
- Sabores de infância: histórias de comida que lembram os tempos de criança.
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