A primeira cena de restaurante em um filme brasileiro

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Cena de Fragmentos da Vida, filme de José Medina, 1929

Um malandro paulistano dos anos 1920 acreditava que morar na cadeia, com “boia” e cama providos pelo governo, seria a melhor maneira de ganhar a vida – muito melhor do que trabalhar, mendigar ou roubar. Ao longo dos 40 minutos do filme Fragmentos da Vida, dirigido pelo cineasta José Medina (1894-1980) e lançado em 1929, o vagabundo sonhador cria inúmeras situações para conseguir se dar bem (= ir para a prisão). Uma delas se desenrola dentro de um restaurante, onde ele come e bebe à vontade e, no fim, se recusa a pagar a conta, imaginando que esse seria o motivo perfeito para que o dono da casa chamasse a polícia que, enfim, o levaria para o xilindró.

A película de José Medina, inspirada no conto The Cop and the Anthem do americano O. Henry, tem grande valor para a história do audiovisual brasileiro. Seu diretor foi um dos pioneiros do cinema silencioso no país e, mais tarde, também se destacaria nos ramos da fotografia (ajudaria a fundar o Foto Cine Clube Bandeirante, em 1939, que impulsionou os estudos sobre fotografia como arte no país) e do rádio. Além da importância para o audiovisual, o filme que Medina levou ao cinema em 1929 tornou-se uma janela interessante para observar alguns lugares de São Paulo no início do século 20, incluindo o Parque Dom Pedro II, que aparece logo no início, e as ruas da Vila Mariana onde moravam Medina e sua família (o filho mais novo dele, Fabiano, é quem protagoniza as primeiras cenas do filme).

Em uma das principais vias do bairro, a Joaquim Távora, fica o restaurante usado pelo malandro como cenário para seu plano de se mudar para a prisão – e que Medina nos dá a chance de conhecer por dentro e em atividade quase 100 anos depois. Trata-se de uma casa como muitas outras que já existiam fora do “point” gastronômico de São Paulo naquela época, então localizado Centro Velho, sobretudo na Praça Antônio Prado e nos arredores. Naquela região central, em um burburinho elegante reinavam restaurants bem diferentes, como o Fasano e o Palhaço, que tinham menus pomposos e caros, escritos em francês ou italiano, e que gostavam de servir dinde à pauliste em vez de peru à paulista (recheado).

Um dos estabelecimentos mais concorridos desses anos 1920, aliás, já mostrava o início de uma descentralização gastronômica na cidade e se instalava na ainda residencial Avenida Paulista, no belvedere onde mais tarde seria erguido o Museu de Arte de São Paulo, o Masp. A casa chamava-se Trianon e, além da panorâmica vista para a capital, oferecia pratos que costumavam remeter ao estrangeiro, como os filets de pescada à l’anglaise, o poulet grillè à l’americaine, as petits pois sautés au beurre. O “afrancesamento” era tanto que chegava a ser ridicularizado por figuras como Monteiro Lobato, que no livro Ideias de Jeca Tatu (1919) reúne, entre outros, um artigo em que diz:

Batizar uma casa de pasto, cá na América, com o nome dum antigo castelo francês [Petit Trianon], sabe-me a disparate. […] Come-se o que é de bom tom comer. Manducar leitão assado, picadinho, feijoada, pamonha de milho-verde, muqueca e outros petiscos da terra é uma vergonha tão grande como pintar paisagens locais, romancear tragédias do meio, poetar sentimentos do povo.”

Entretanto, é certo que não havia só restaurantes como o memorável Trianon na São Paulo do início do século passado. Havia também casas que ainda se aproximavam do antigo conceito de “casa de pasto” mencionado por Lobato, com pratos mais simples e caseiros, variáveis de acordo com o dia da semana – como acontece ainda hoje. Na Rua José Bonifácio, no Centro, existia, por exemplo, o Mercúrio, que servia tripas às segundas, rabada às terças, mocotó às quartas, bacalhoada às sextas, feijoada aos domingos e nhoque e ravióli aos domingos (por algum motivo, as quintas pareciam não ter prato fixo). As principais qualidades do lugar surgiam em negrito no meio de um anúncio publicado no Diário Nacional de 21 de maio de 1929: pratos variados, higiene rigorosa, rapidez.

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A higiene era talvez o principal predicado esperado por uma casa que servisse comida. Em meio às preocupações sanitaristas e de controle de epidemias da época, os restaurantes tinham de garantir o asseio para serem visitados por gente então considerada “de bem”, com alguma instrução e dinheiro. Como o hábito de comer fora ainda não estava tão consolidado entre os paulistanos, a intenção desses estabelecimentos era não apenas matar a fome, mas proporcionar a sociabilidade que esses locais automaticamente transmitiriam algumas décadas mais tarde. É por isso que, nesse período, muitas casas se anunciavam nos jornais acrescentando à higiene o fator “ambiente familiar” ou “cozinha familiar”, como o faz o restaurante usado como locação por José Medina.

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Na fachada da casa, lê-se não seu nome, mas seu principal atrativo: “cozinha familiar“. Talvez essa tomada nos indique que o malandro estava para entrar em uma casa de respeito, ainda que fosse um “mata-fome”, como ele mesmo diz, um restaurante simples. No salão cheio, com uma ou outra moça de cabelo e chapéu à melindrosa, o protagonista se dirige a uma mesa vaga, que tem uma jarra de refresco – laranjada, suco de uva? – a postos. Como os demais clientes já haviam feito, tira seu chapéu e o coloca em um dos ganchos da chapeleira (quando estes ainda não eram artigos para compor decoração retrô). Assim que o garçom se aproxima, em vez de entregar a ele um cardápio, parece ditar os pratos do dia.

O malandro faz sua escolha e, logo, a recebe. Primeiro, um dos garçons de smoking branco traz um prato com fatias de pão; depois, outro carrega até ele uma travessa e o serve com algo que lembra uma salada (ou seria uma massa? Ou uma carne com legumes? Indecifrável). Em seguida, elegantemente deixa o recipiente sobre a mesa, enquanto pega o abridor para destampar a garrafa de cerveja – ao menos é isso o que sugere a espuma que se forma no copo, sobre o líquido (e quanta espuma!). Antes e depois de uma mudança de fita para a segunda parte do filme, o personagem está à mesa, fartando-se da comida, acompanhando-a de pão. E a cena termina com o momento de pedir a conta, calculada no papel por um homem que deve ser o gerente e que se enfurece quando o vagabundo revela a intenção de não pagá-la…

O filme segue por outras paisagens paulistanas, incluindo a fachada de um empório e da antiga fábrica da Lacta, na Vila Mariana. A cena descrita acima, no entanto, tem destaque para quem se interessa pela história gastronômica da cidade: pode ser, afinal, a primeira imagem em movimento já feita do interior de um restaurante de São Paulo. O filme completo pode ser assistido a seguir (corra até o minuto 15 para ver o momento em que o personagem chega à “cozinha familiar”).

***

Fragmentos da Vida é uma produção em preto e branco, silenciosa, com passagens lentas, conversas subentendidas ou transcritas em diálogos que se demoram na tela escura. Não estamos mais acostumados com essas sutilezas e essa ausência de efeitos sonoros em um filme, e talvez seja por isso que assistir à obra de Medina hoje pareça ainda mais especial.

Amanhã, 14 de janeiro de 2017, como parte de uma atividade na Casa Guilherme de Almeida, em São Paulo, que começa às 10h, Fragmentos da Vida será exibido em sessão especial, acompanhado de música ao vivo, como nas exibições de cinema da época em que foi lançado. Um debate entre a bisneta do diretor, Vera da Cunha Pasqualin, que estudou a produção radiofônica de Medina, e o poeta e cineasta Donny Correia segue-se ao filme. Mais informações aqui.

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