O último dos comedores de içá

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A paçoca de içá do restaurante do Ocílio, em visita do Lembraria antes de existir Lembraria, em 2014 (foto: Renata Helena Rodrigues)

No domingo, 18 de dezembro de 2016, morreu em Caçapava, aos 78 anos, Ocílio Ferraz, pesquisador e sobretudo divulgador da cozinha caipira, em especial a que ele tanto se orgulhava de classificar como vale-paraibana. Seu Ocílio comandava um restaurante na cidadezinha de Silveiras, no Vale do Paraíba, a 230 quilômetros de São Paulo, e ali, em um ambiente de sítio, servia virado de feijão, linguiça, torresmo, vaca atolada, frango caipira, entre outros pratos tradicionais, hoje mais genericamente considerados como pertencentes à culinária mineira.

O principal atrativo da casa de Ocílio era, no entanto, um petisco que ele mesmo fazia questão de levar à mesa e de explicar sem demora, detalhe por detalhe: paçoca de farinha de mandioca com içá, fêmea alada e agigantada da formiga saúva (tanajura), que costuma sair em bandos de seus ninhos durante a primavera, para acasalar com o macho, conhecido como bitu. Um ligeiro google no inseto-ingrediente resulta em inúmeras reportagens que o tratam como um exotismo brasileiro, cultivado por tradicionalistas como seu Ocílio. Em um artigo de 2011 do jornal americano The New York Times, sobre a ameaça dos pesticidas à “ant-eating tradition” no Vale do Paraíba, o agora falecido pesquisador de Silveiras era chamado, não por acaso, de “içás’ guru“, o guru das içás.

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Trecho do livro Culinária Tradicional do Vale do Paraíba, de 1992, escrito por Paulo Camilher Florençano e Maria Morgado de Abreu, com a participação de Ocílio Ferraz

Tempos atrás, a “tradição de comer formigas” – que implica, antes, caçá-las em meio à revoada que se forma sobre os formigueiros, tirar suas perninhas e cabeça e fritar seus gorduchos abdômens (chamados de bundinhas) em banha de porco, às vezes, adicionando farinha – não se restringia a essa região do estado de São Paulo. Também na capital, até meados do século 19, a içá torrada era receita trivial, remanescente de um hábito alimentar indígena que já havia sido documentado pelo padre José de Anchieta na época da fundação da vila de São Paulo de Piratininga. Em suas Cartas Jesuíticas, mencionadas no artigo Içá, um petisco tradicional publicado pelo folclorista Karol Lenko no jornal A Gazeta de 22 de outubro de 1960, Anchieta registrou que:

“[…] para ver quando elas [içás] saem de suas cavernas, ajuntam-se os índios que ansiosamente esperam este tempo, tanto homens como mulheres: deixam as suas casas, apressam-se, correm com grande alegria e saltos de prazer para colher os frutos novos. […] enchem os seus vasos, isto é, certas cabaças grandes, voltam para casa, assam-nas em vasilhas de barro e comem-nas; assim torradas, conservam-se por muitos dias, sem se corromperem. Quão deleitável é essa comida e como é saudável, sabemo-lo nós, que a provamos.”

O hábito de caçar e consumir içás persistiu ao longo dos séculos na pacata vila paulistana, a ponto de dar aos seus moradores o apelido de “papa-formigas” (segundo Roberto Pompeu de Toledo, no primeiro volume do livro A Capital da Solidão, de 2003) ou de “comedores de içá” (de acordo com o referido artigo do folclorista Karol Lenko). Nos tabuleiros das quitandeiras que perambulavam pelas vias ainda não calçadas do Triângulo, o entorno das ruas Direita, São Bento e do Rosário (atual Quinze de Novembro), ao lado de cuscuz de bagre e de empadinha de lambari havia sempre içá torrada, que era assim alardeada: “Vai içá? Vai içá?”. Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Caminhos e Fronteiras, publicado pela primeira vez em 1956, deu conta desse costume:

A içá torrada venceu todas as resistências, urbanizando-se mesmo, quase tão completamente como a mandioca, o feijão, o milho e a pimenta da terra. […] Nos meses de setembro e outubro, em que saem aos bandos essas formigas aladas, buscava-as com sofreguidão, nos seus quintais, a gente de São Paulo, e ainda em pleno século 19, com grande escândalo, para os estudantes forasteiros, eram apregoadas elas no centro da cidade pelas pretas de quitanda, ao lado das comidas tradicionais: biscoito de polvilho, pés-de-moleque, furrundum de cidra, cuscuz de bagre ou camarão, pinhão quente, batata assada ao forno, cará cozido…”

Os estudantes forasteiros citados por Buarque de Holanda, que se escandalizavam com as formigas paulistanas, eram aqueles que, desde 1828, vinham de diversas partes da província e do país para se formarem bacharéis na recém-fundada Academia de Direito, no Largo de São Francisco. A instalação do curso constituiu um ponto de virada importante na história de São Paulo: de “tediosa” e “mal ladrilhada”, como a descrevia o paulistano Álvares de Azevedo, que nos fins dos anos 1840 deixou uma temporada no Rio de Janeiro para estudar Direito em sua cidade-natal, ela passaria a se desenvolver a passos largos, com o surgimento de novos comércios, novos hotéis e suas novas salas de refeições, para atender aos anseios dos jovens da Academia que não paravam de chegar.

Um desses estudantes, Francisco José Pinheiro Guimarães, entrou para os anais das curiosidades paulistanas com aquela que talvez tenha sido a primeira sátira ao caipirismo ainda reinante na capital. Por volta dos anos 1830, durante um espetáculo no antigo teatro do Largo do Palácio (hoje Pátio do Colégio), ele se levantou em meio à plateia cheia para recitar um poema de sua autoria – que, no entanto, não pareceu muito lisonjeiro aos presentes. Começava assim:

“Comendo içá, comendo cambuquira
Vive a afamada gente paulistana
E as tais que chamam caipira,
que não parecem ser da raça humana…”

A continuação da poesia nunca pôde ser conhecida, já que, sob vaias estrondosas, o fanfarrão teve de ser escoltado pelos amigos para fora da casa. Essa história e esses versos aparecem em inúmeros textos que contam a história de São Paulo. A autoria é, às vezes, atribuída a outro estudante, Júlio Amado de Castro, e a cena, muitas vezes, descreve-se como acontecida em um teatro enfeitado para a comemoração de 7 de setembro de 1830 (ou 1839). A primeira referência ao causo data de 1859, no meio de um texto da anual Revista da Academia de S. Paulo sobre os poetas que haviam ali estudado anos antes.

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Referência à poesia de Pinheiro Guimarães na Revista da Academia de S. Paulo de 1859

De qualquer maneira, o certo é que, a partir de meados do século 19, talvez depois do incidente que ligou a içá a uma nascente imagem negativa do caipira paulista e paulistano, a formiga torrada deixou de ser uma comida integrada à normalidade do cotidiano. Passou, então, a se consolidar como sinônimo de provincianismo e atraso, termos que não mais combinavam com as crescentes aspirações de comerciantes e fazendeiros do café (futuros industriais) em transformar a cidade na metrópole do progresso, equiparável às modernas capitais europeias.

A içá torrada tornou-se, de certa forma, a representação de uma cultura indígena e ultrapassada – caipira – não mais desejada. No livro Viagem ao Rio Araguaia, de 1863, o general mineiro Couto de Magalhães, ele próprio ex-estudante da Academia de Direito de São Paulo, já percebia que, se antes comia-se a receita “nas melhores famílias”, em seu tempo “só a comia em boas famílias, escondidas…”. Em mais ou menos trinta anos, se considerarmos a poesia satírica de Pinheiro Guimarães como marco, as içás virariam motivo de vergonha para certa elite local – a das “boas famílias”.

As formigas na culinária foram, assim, sendo esquecidas de propósito, embora haja indícios de que tenham sido apreciadas na capital paulista até fins do século 19. (E não apenas como artigo comestível. Por volta de 1880, o litógrafo e comerciante Jules Martin, francês que se tornaria famoso por planejar o primeiro Viaduto do Chá, gostava tanto das gorduchas saúvas que as caçava talvez para fritá-las e comê-las, mas também para transformá-las em curiosas “tanajuras vestidas”: ele fazia miniaturas de trajes da época e de fantasias e as colocava junto a partes retiradas do corpo das içás. É possível ver em uma foto dessas formigas sobreviventes, na versão bailarina, pedaços dos “bracinhos” e da cabeça colados à minuciosa roupinha. Essas tanajuras eram vendidas por preços altos, como se fossem curiosidades dignas de gabinetes de colecionadores.)

Além de virarem bons petiscos (ou mesmo miniaturas que hoje seriam tidas como bizarras), as içás eram consumidas para fins terapêuticos, sobretudo para curar conjuntivites e outros problemas de visão. Em artigo publicado no Diário do Grande ABC em 16 de janeiro de 1972, o folclorista Rossini Tavares de Lima fala sobre as cachaças com içá catalogadas por ele e expostas na “pingateca”, uma seção dedicada aos preparos artesanais da aguardente no Museu de Folclore (atualmente, fechado), então comandado por ele, no Parque do Ibirapuera. Segundo Rossini, o ácido fórmico das tanajuras davam à bebida um gosto excepcional e a tornavam “estimulante”.

As propriedades terapêuticas, estimulantes e até mesmo afrodisíacas das içás também foram citadas por outro folclorista, o potiguar Luís da Câmara Cascudo, em um ensaio na revista Crítica, de abril-maio de 1966, intitulado Comendo Formigas. Nele, o folclorista nacionaliza o consumo das saúvas, mencionando a presença delas, inclusive, na obra Folclore Pernambucano, de Pereira da Costa, como um “manjar delicioso para nossos campônios, que as apanham em quantidade prodigiosa, de um modo singularíssimo”. O modo singularíssimo era o seguinte:

“Colocam-se embaixo da árvore sobre a qual tem a tanajura o seu ninho e com uma urupema às mãos e pronunciando em certa toada a parlenda:
Tanajura, cai, cai!
Pela vida de teu pai!
Se desprendem elas e caem sobre a urupema, e em quantidade tal que imediatamente se enche do apetecido inseto.”

Para Cascudo, o nome “tanajura”, em vez do paulistano “içá”, era o preferido no Nordeste e no Norte do país. Em qualquer canto, contudo, a formiga teria como apreciadores apenas a “gente de outrora”. “Só mesmo a curiosidade levará um menino de cidade a mastigar a formiga”, dizia ele, que assim escolheu concluir seu longo artigo sobre os insetos-ingredientes:

“Lastimo informar que a tanajura é um manjar que está desaparecendo do cardápio folclórico do Brasil.”

***

A previsão de Câmara Cascudo, de que o manjar formigueiro estaria desaparecendo do cardápio brasileiro, não se provou de todo certa. É verdade que, sobretudo na cidade de São Paulo, nos forçamos a esquecer que já comemos e adoramos a içá torrada, como petisco do dia a dia. Entretanto, hoje, na mesma capital paulista, não nos damos conta de que ainda a consumimos, não mais no dia a dia, mas na condição de receita exótica da Amazônia ou de algum recôndito escondido, como a Silveiras de Ocílio Ferraz, longe da urbanidade cosmopolita, perto de uma romântica – e assim idealizada – zona rural, que serve de paisagem ao marketing da nostalgia de que nos vemos imbuídos.

Em uma reportagem da descolada revista gastronômica americana Lucky Peach, a içá brasileira, amazonense por suposição, aparece entre os 30 Iconic Dishes of Fine Dining. No fim da lista de “pratos de um século e meio atrás que exemplificam o zeitgeist, ou dobram o curso da cozinha em uma nova direção”, depois do “canard à la presse” (pato prensado em uma máquina inventada pelo restaurante parisiense Tour d’Argent, em 1890), chega-se ao tópico “ants and pineapple“, formigas e abacaxi, um conjunto servido no D.O.M., de Alex Atala, na década de 2000. O texto diz, em tradução livre, que:

“Atala é um campeão de ingredientes amazônicos e da importância de apoiar comunidades indígenas. Na floresta tropical do Amazonas, Atala descobriu o intenso sabor de capim-limão e gengibre dado pelas formigas. No D.O.M., ele serviu uma formiga intacta e seca sobre um cubo de abacaxi fresco, efetivamente desestigmatizando os insetos como ingredientes em cozinhas de jantares refinados. Formigas e outros insetos começaram a aparecer em menus ao redor do mundo desde então.”

Se a saga do célebre cozinheiro não fosse apenas pela preservação e divulgação da exuberância alimentar da Amazônia, ele poderia também ter encontrado bons exemplares de formigas comestíveis, e uma receita bastante antiga delas, no passado de sua cidade-natal ou no presente do Vale do Paraíba. Ali, pela iniciativa de folcloristas e pesquisadores ainda voltados para a (questionável ou não) exaltação de uma tradição, mantém-se o costume de caçar, comer e/ou vender içás torradas. E de divulgá-lo por meio, sobretudo, do restaurante mantido pelo agora falecido Ocílio Ferraz, que esperamos não ter sido o último dos orgulhosos comedores de içá.

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