
“Quando mocinhas, elas podiam escrever seus pensamentos e estados d’alma (em prosa e em verso) nos diários de capa acetinada com vagas pinturas representando flores ou pombinhos brancos levando um coração no bico. Nos diários mais simples, cromos coloridos de cestinhos floridos ou crianças abraçadas a um cachorro. Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer em guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o recurso do caderno do dia a dia, onde, de mistura com os gastos da casa cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousam escrever alguma lembrança ou confissão que se juntava na linha adiante com o preço do pó de café e da cebola. Os cadernos caseiros da mulher-goiabada. Minha mãe guardava um desses cadernos que pertencera à minha avó Belmira. Me lembro da capa dura, recoberta com um tecido de algodão preto. A letrinha vacilante, bem desenhada. Era menina quando via minha mãe recorrer a esse caderno para conferir uma receita de um gargarejo. “Como mamãe escrevia bem! – observou mais de uma vez. Que pensamentos e que poesias, como era inspirada!” Vejo nas tímidas inspirações desse cadernão (que se perdeu num incêndio) um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na chamada carreira de letras – um ofício de homens.”
Na página 14 do livro A Disciplina do Amor, lançado pela primeira vez em 1980, Lygia Fagundes Telles (1923-) se lembra dos velhos companheiros das mulheres de outros tempos: os cadernos caseiros, que já não guardavam os segredos de amor uma vez escondidos nos diários das mocinhas solteiras, nem se dedicavam apenas às receitas ou às listas de compras. Entre o preço do pó de café e da cebola, antes ou depois do passo a passo da goiabada, uma poesia, um pensamento ou um desabafo surgiam, escritos à mão. O caderno era, de certa forma, o refúgio da mulher que vivia para controlar a goiabada, a cozinha, o lar, o cotidiano da família.
Escrever ali, naquelas folhas, era uma maneira de se sentir ouvida, de estabelecer alguma conexão com alguém – que poderia, mais tarde, ler aquelas linhas – e também com o próprio objeto de páginas pautadas, silencioso e fiel em seu testemunho. Mas, para escrever, era preciso ler, uma habilidade que boa parte das mulheres brasileiras só passou a ter a partir da segunda metade do século 19. Antes disso, contava-se somente com a oralidade para transmitir um saber, uma reza, um medicamento, um poeminha, uma receita. Não à toa, Lygia percebe os cadernos dos tempos de sua avó, cheios de excertos inspirados, como primeiros sinais do movimento que levaria a mulher ao então masculino universo dos ofícios fora do lar.
A historiadora Rosa Belluzzo, em seu livro São Paulo: memória e sabor, de 2008, analisou cadernos de receitas da primeira metade do século 20 e constatou que esses refúgios com linhas eram simulacros do que as próprias mulheres, suas autoras, representavam para o ambiente doméstico: tudo. “Curiosamente, acompanham esses cadernos registros de fórmulas de medicamentos caseiros e de produtos para limpar panelas de cobre, receita de sabão, de graxa para sapatos e de creme para clarear a pele”, diz ela, na página 69.
Muitas vezes perdidos entre as gerações (ou queimados em incêndios), os cadernos caseiros eram, enfim, não só refúgios. Eram, principalmente, retratos da mulher “do lar”, mulher que tinha seu valor medido, sobretudo, pela destreza com que mexia o tacho de doce. Mulher-goiabada que, mesmo sem caderno, talvez resista ainda hoje, de outras formas, com outras receitas, outras frutas.