
Autor do clássico A Fisiologia do Gosto, o francês Brillat-Savarin (1755-1826) foi quem escreveu o aforismo “diga-me o que tu comes que te direi quem és”. Inspirado por essa questão já batida, proposta por Savarin, este texto começa com uma pergunta: “quem era você há vinte, trinta anos?”. Ou, em outras palavras, o que comia nas décadas de 1980 e 1990, o que costumava comprar no supermercado, o que tinha vontade de preparar, o que servia para as visitas ou nas festinhas de aniversário?
Já falamos aqui algumas vezes da moda da nostalgia que talvez seja uma das expressões mais notáveis da nossa geração. Recordar-se de brinquedos, roupas, músicas e receitas como símbolos dos anos 1980 ou 1990 é, hoje, algo corriqueiro (sobretudo nos encontros de “x” anos de colégio, faculdade), causado e causador de uma saudade coletiva que remete não a um tempo, mas a um sujeito: nós mesmos. Sentimos tanta falta dos objetos que fizeram parte do passado porque eles eram usados, ouvidos e consumidos por um alguém que já não somos e que, de longe, nos parece mais jovem e quase sempre mais bonito, mais feliz.
Lembrar o que comíamos pode, assim, nos dar pistas sobre quem fomos. Depois de folhear as páginas de algumas edições das décadas de 1980 e 1990 de uma famosa revista de culinária mensal, Claudia Cozinha, posso dizer que, apesar da proximidade desses anos, éramos bem diferentes. Estávamos sendo apresentados a comidas “exóticas” – o camarão com curry, com sua influência indiana destacada, parecia ser a última moda – e à febre das receitas light, de baixas calorias. Entretanto, do que parecíamos mais gostar era de um utensílio que, desde meados dos anos 1980, começava a marcar território em nossa cozinha: o micro-ondas.
A criação de uma seção especial na revista dedicada às receitas preparadas com a ajuda dele, explicadas por uma “especialista” contratada por uma marca de eletrodomésticos, é um sintoma da aceitação geral de que o micro-ondas representava uma nova maravilha para quem cozinhava no dia a dia. As propagandas insistiam sempre em relacioná-lo à modernidade: a “mamãe moderna” do anúncio de quatro páginas que abre este texto e continua logo abaixo fazia as papinhas de seu filho e as esquentava sob as ondas daquela incrível novidade, sem demora e sem dificuldade.
“Ele chegou e já transformou sua casa e sua vida completamente. E, por mais que você tenha esperado por ele, nunca poderia imaginar que as coisas seriam deste jeito. Está certo que você já não tem mais tempo para você, já que ele exige a sua presença o tempo todo. Sono? Sempre. Dormir? Nunca. […]
Neste momento, o seu fiel aliado também vai ajudá-la. Sim, porque o Forno de Microondas está aí para auxiliá-la nos cuidados e no carinho para com o seu bebê. […]
Agora, se é hora de alimentá-lo com estas comidas preparadas especialmente para ele, basta apenas retirar a tampa metálica e deixar o pote de vidro no seu Forno de Microondas para aquecer. Em 10 segundos, Potência ALTA. O mesmo pode acontecer com as sopinhas que você prepara para ele. Basta, neste caso, cortar os vegetais em cubinhos, deixar cozer no seu Forno Brastemp Eletronic Defrost, bater depois, com um “mixer”, e pronto. É só servir. E no mesmo recipiente. Com isto, você economiza tempo e utensílios. E ele nunca vai poder reclamar de que não foi atendido quando tinha fome.”
Naquele fim da década de 1980, o tempo já parecia nos faltar. É curioso como o anúncio insiste em dizer que o micro-ondas, além de ser um “fiel aliado”, proporcionava uma significativa economia de tempo para um cliente que era, exclusivamente, uma mulher, mãe, dona de casa. O texto dirigia-se a essa figura feminina, responsável pelo filho e, por isso, sem tempo para ela mesma; o micro-ondas representava, portanto, um novo e bem-vindo “amigo” dessa “mãe moderna”.
A propaganda do micro-ondas pegou. Logo, ele passou a frequentar a cozinha de todo mundo; virou item quase obrigatório. As empresas e as lojas de eletrodomésticos começaram a organizar cursos específicos para quem quisesse aprender a cozinhar tudo – tudo mesmo – com a ajuda do dito-cujo. As aulas, em que se aprendia a usar os diversos tipos de potência e a programar os tempos adequados para cada preparo, eram concorridíssimas. Livros de “receitas de micro-ondas” lotavam as bancas, e o pi-pi-pi anunciando que o prato estava pronto misturou-se de vez aos outros barulhos comuns da cozinha.
Assim como o fogão a gás, a geladeira, a batedeira e o liquidificador, o micro-ondas representou uma das importantes transformações da cozinha do século 20. E ele não chegou sozinho: sua entrada triunfal, nos anos 1980, veio acompanhada do freezer, o congelador separado ou acoplado aos refrigeradores, que fez com ele uma dupla dos desejos nas listas de presentes de casamento. Não por acaso, as receitas de alimentos congelados, que ficavam “frescos” novamente em minutos no forninho, apareciam com frequência nas revistas de culinária entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990.

As páginas acima abrem um texto na mesma revista Claudia Cozinha com sugestões de montagem para hambúrgueres congelados de diversas marcas, que foram testados pelo Instituto Adolfo Lutz quanto aos seus valores nutricionais e à presença de gordura, sódio, bolores e bactérias. O resultado da análise foi, segundo o texto, favorável: “todos se revelaram boa fonte de proteínas, embora sejam um tanto gordurosos, desaconselháveis para quem faz dieta para emagrecer ou tem problemas de colesterol”. Nas páginas seguintes, aparecem receitas como a do hambúrguer (congelado) à parmegiana ou com abobrinha temperada.
Hoje, quase trinta anos mais tarde, o freezer continua a habitar nossas cozinhas, mas o micro-ondas e o hambúrguer congelado… nem tanto. Já é sabido que os alimentos preparados ou esquentados no aparelho podem perder nutrientes ou até mesmo fazer mal para a saúde, e, assim, aos poucos, ele vai perdendo o antigo reinado. O hambúrguer, por sua vez, está cada vez mais presente, mas não exatamente na versão congelada: é a chamada gourmet, com blends de carnes moídas na hora, que ganha impulso entre os modismos alimentares do nosso tempo, dentro e fora de casa.
Voltando ao início deste texto, retorno à questão: será que éramos de fato mais inocentes naquele tempo não tão distante, quando parecíamos cair sem reservas no discurso da novidade e da praticidade? Será que, hoje, nos tornamos mais críticos e estreitamos nossa relação com a cozinha ou será que, somente daqui a alguns anos, é que vamos nos dar conta dos micro-ondas e congelados dos anos 2010?
A ver.
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