Das coisas que gosto na culinária húngara: o doce de papoula; a palacinta; o goulash; o doce de mil-folhas.
Das coisas que gosto na culinária brasileira, o escondidinho de mandioca; o pastel; o doce de abóbora com coco; o doce de queijo com goiabada.
Cresci vendo minha mãe fazer doce de papoula. O que posso te dizer sobre a papoula e sobre como esse doce me acompanhou durante a vida, sendo mais fiel a mim e eu a ele do que eu a meus amigos, a Imre e a algumas poucas ideias?
A massa é folhada, crocante, tem gosto de manteiga e as folhas se quebram (com a mão, não com a faca), deixando cair migalhas que mais tarde devem ser recolhidas com os dedos. É a mesma massa do strudel alemão, mas a de dona Eszter é mai sleve, talvez pelo tempo de descanso, ou pelo vigor com que ela a estende e amassa, ou por causa da farinha, que ela compra recém-moída.
A papoula é crocante e isso faz parte do gosto. Você não acha que o paladar é uma espécie de tato? Ela não pode ser dura nem fazer ruído. Deve ser suficientemente resistente à mordida, mas ceder e ficar só como resto entre os dentes, que, depois de comer, você limpa com a língua e, se quiser, com as unhas. Não se pode comer o doce como se vai a uma festa, mas como quem acaricia um cachorro grande. O doce de papoula é uma constatação de que, se a civilização fez algum sentido, foi esse.
Excerto da página 109 de “Írisz: as orquídeas”, de Noemi Jaffe (Companhia das Letras). O romance conta a história de Írisz, que foge de Budapeste em meados da década de 1950, por causa da invasão soviética. Ficam na Hungria uma história de amor e uma mãe que tem enorme influência em sua vida. Em São Paulo, ela pesquisará orquídeas, conhecerá outro homem e fará uma reflexão profunda sobre a própria vida. Reflexão pontuada, entre outras coisas, por sua memória afetiva da culinária húngara e o contato com a comida brasileira. Um texto lindo. Falei dele no Questão de Gosto de número 11.
LEMBRARIA 