Narcisa, já preparou a massa do biscoito de polvilho?

“- Estas suas balas são deliciosas. Eu não consigo fazer ficarem douradas. Açucaram.
– Como é que você faz?
– Eu ponho açúcar e água em proporção e faço ferver. Mas, à primeira mexida de colher, açucara tudo.
– É isso! Não se pode mexer!
– Mas como é que se mistura?
– Mistura e mexe antes de pôr no fogo. Uma vez fervido é só experimentar de vez em quando com a ponta da colher, para ver a consistência. Mas sem mexer.
– A senhora é uma doceira de fama.
– Qual, minha filha, eu faço o que posso.
– Aquela sua marmelada branca é uma delícia.
– Aprendi com minha mãe na fazenda. Mas até agora eu faço uma tachada grande todos os anos, para o lanche das crianças na escola, e para quando faltar sobremesa.
– Mas como é que se faz para ficar em cima aquela camada branquinha, meio açucarada.
– É o segredo. Marmelada não se faz com açúcar refinado comum. Faz-se com açúcar cristalizado. Açúcar refinado não cristaliza, mas o cristalizado torna a cristalizar numa camada finíssima por cima. É só pôr no sol as caixetas abertas, uma porção de dias, coberta com filó para evitar moscas. Ao fim da semana, aquela camadinha que se formou isola do ar, e evita azedar, porque a marmelada branca azeda mais facilmente que a vermelha. Com licença.
– Narcisa, você já preparou a massa de biscoito de polvilho? Então aqueça bem o forno para fazer ficar durinho por fora e mole por dentro, para comer quente com manteiga, no lanche.

Narcisa juntou no fogão uns gravetos de lenha, pôs uma casca seca de laranja, em forma de espiral, que desde a semana passada estava pendurada no fumeiro, rasgou e acendeu uma ponta de jornal, fez pegar o fogo nos gravetos e quando a chama ameaçava diminuir atiçava com o abanador de vime. Os biscoitos vieram quentes e a tempo, para servir ao lanche com o café com leite.

– Essa sua Narcisa é uma preciosidade.
– Está conosco desde que me casei, faz quinze anos.”

Em muitas crônicas registradas no livro São Paulo Naquele Tempo (1895-1915), o memorialista Jorge Americano reproduz diálogos cheios de detalhes – provavelmente imaginários – que deve ter ouvido atrás da porta da cozinha de sua casa, quando criança. No trecho reproduzido acima, sua mãe, “doceira de fama”, conversa com uma amiga, enquanto dá ordens a Narcisa, a ex-escrava agora empregada da família, para o preparo dos corriqueiros biscoitos de polvilho da São Paulo antiga…

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